Autora fala sobre erros e acertos de seu folhetim de estreia no horário nobre
"Um Lugar ao Sol" chegou ao fim no último dia 25, trama que marcou a estreia de Lícia Manzo no horário nobre, a autora de sucessos como “A vida da gente” (2011) e “Sete vidas” (2015), no horário das seis, fez um balanço da trama que girava em torno do êmeo pobre que toma o lugar do outro, rico vividos por Cauã Reymond, história esta também que abordou temas como preconceito social e racial, gordofobia e abuso emocional. O agora ex folhetim das nove, estrou todo gravado, devido a crise sanitária da Covid-19; Lícia defende suas escolhas para os finais dos personagens.
Quais foram os maiores acertos e erros de “Um lugar ao sol”?
Meu maior acerto foi não me economizar, me entregar inteiramente ao trabalho. Meu maior erro também, pois terminei exaurida. Foram quatro anos de dedicação integral à novela. Em minha equipe, apenas, tive a sorte de poder contar com a entrega e investimento de sete profissionais que respeito e admiro. Como diz a célebre canção ‘se tivesse mais alma pra dar, eu daria’. ‘Um lugar ao sol’ é fruto do meu absoluto e total investimento.
Qual o balanço você faz da experiência de escrever sua primeira novela das nove com uma pandemia atravessando a exibição?
Fé na capacidade de adaptação e superação das pessoas. Foram enormes desafios humanos, artísticos, empresariais. A soma do esforço e entrega de cada um viabizou o resultado.
Christian teve uma relação tóxica com Bárbara (Alinne Moraes). Qual mensagem você quis passar ao retratar essa união?
Nenhuma mensagem ou resposta. Apenas levantar perguntas: mudar o outro parece um projeto possível, saudável? Na raiz da codependência de Bárbara está o nó de tantas mulheres: buscar no outro a solução para os próprios problemas. Existe uma herança cultural por trás disso: a mulher resgatadora, que deve cuidar do marido. E me parece que a ficção serve como espelho: é patético o esforço de querer que o outro se equilibre para que possamos nos equilibrar.
Rebeca (Andréa Beltrão) debateu vários temas importantes, mas a cena em que ela se masturbava deu o que falar. Por que o prazer feminino é um tabu?
Em comentários nas redes, encontrei repetidas vezes a observação: ‘cena desnecessária’. Uma mulher, num casamento tóxico e desgastado, dispensa o sexo com o marido para encontrar prazer no próprio corpo, em si mesma. Um movimento de libertação legítimo. Mas enquanto a busca do prazer feminino estiver vinculada à ideia de vulgaridade, a cena seguirá, acredito, sendo classificada como incômoda ou ‘desnecessária’.
Você é uma mulher na faixa dos 50 anos e retratou muito bem os dilemas e desejos de Rebeca e Ilana (Mariana Lima) na novela. A Rebeca funcionou como uma espécie de alter ego pra você? Com qual personagem você mais se identifica?
Me identifico com todos ou seria incapaz de escrevê-los. Mas no caso de Rebeca, sim, penso que tenho ‘lugar de fala’.
Nicole (Ana Baird) passou a novela sofrendo por ser gorda, sem se aceitar. Por que optou por tratar a gordofobia assim?
Como o próprio nome diz: gordofobia; fobia, aversão, exclusão da pessoa gorda. Há uma indústria que fatura alto com isso. Ana Baird, a Nicole, é ativa na militância pró corpo livre. Ela confessa que, na idade da personagem, ainda se detestava. Tornou-se capaz de amar o próprio corpo e a si mesma há pouquíssimo tempo. Ela tem 51 anos. Poderia ter criado uma personagem gorda já resolvida. Levando em conta o mundo que temos hoje, infelizmente, essa não me pareceu uma abordagem realista. É importante que a mulher que rejeita a si própria possa se enxergar de fora, e perceber como é cruel subjugar-se a opiniões, preconceitos, dietas, remédios e procedimentos malucos e desnecessários. A autoaceitação é um longo caminho.
Stephany (Renata Gaspar) foi vítima de violência doméstica a novela toda. Numa das cenas mais bonitas da personagem, ela finalmente cria coragem para denunciar o marido e parece que vai se livrar dele. Mas acabará sendo assassinada. Por que a personagem tem um fim tão trágico?
Movimentos de libertação ou cura nunca caminham em linha reta. Recaídas são parte do processo. Stephany é adicta em adrenalina. Na turbulência e nos ‘ups and downs’ de sua relação com o marido. Há também a questão do capital marital. A separação, para a mulher, ainda é vista como uma perda, um desprestígio. Soma-se a isso a manipulação psicológica, o gaslighting, e todas as artimanhas utilizadas por um psicopata narcisista como Roney. Tudo faz Stephany oscilar entre ir e ficar. Criada sem pai nem mãe, contando apenas com o apoio da irmã um pouco mais velha, Stephany cresceu sem perspectivas. É uma mulher sem estrutura, de baixa autoestima. A ponto de embarcar numa relação com Renato/Christian mesmo sabendo que ele não a ama; que está ali por chantagem.
Com relação ao fim trágico da personagem, o Brasil ocupa hoje o 5º lugar no ranking mundial de feminicídios. Uma mulher é morta a cada 7 horas - muitas vezes dentro de casa. Stephany, desde o início da trama, é um personagem trágico, um trem bala desgovernado, e por isso não me pareceu crível desenhar para a trama uma redenção cor de rosa. Mulheres morrem assassinadas, infelizmente. E ‘Um lugar ao sol’ é uma obra realista.
Como está sendo o processo de despedida da novela? Você pensa em seguir escrevendo para horário das nove? Quais são seus próximos projetos profissionais?
Nunca ambicionei o horário das nove ou nenhum outro em específico. Naturalmente, penso em seguir escrevendo, mas meu único projeto agora é me refazer, descansar.
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